sábado, 27 de dezembro de 2008

Um prazer ouvi-lo

Teve uma época em que era legal ir a uns debates. Isso foi mais ou menos nos anos 1990, quando viemos para o Rio estudar, e em "nós" eu incluo Carmélio e Jeffinho além de mim, é claro. Uma dessas vezes, no Teatro Casagrande, era o Betinho quem comandava uma dessas mesas. Aliás, o sociólogo Herbert de Souza merecia um post especial. A única exigência dele nessas mesas era que tivesse cerveja disponível para que ele ficasse bebendo durante as conversas. Uma vez, ele contou isso e revelou que após um encontro, uma pessoa o procurou, dizendo-se portador do HIV, e o perguntou qual era a marca da cerveja que ele tomava que o deixava tão bem de saúde.

Claro que isso é um exemplo do bom humor que cercava esses encontros, principalmente quando tinha o Betinho no comando. Mas, não é sobre isso que eu quero falar. Quero dizer que, em um desses debates, um jovem senhor fez uma pergunta sobre política cultural, que infelizmente eu não lembro mais. De pé, pois a sala estava cheia, ele elaborou algumas frases interessantes e fez a questão. A resposta do Betinho foi antecedida por uma saudação que surpreendeu os espectadores (pelo menos eu).

- Taiguara! é um prazer revê-lo.

Era o Taiguara, cantor e compositor nascido no Uruguai, que participava dos grandes festivais, e que sua canção mais famosa é Universo do Teu Corpo, da época da foto acima, meio romântica, meio riponga, meio trágica, que começa com o verso "eu desisto". Ou então, da segunda composição mais famosa dele, chamada Viagem, com os mesmos adjetivos da anterior, que sugere que a pessoa amada abandone "a morte em vida em que hoje estás".

Mas o que me veio à mente quando vi o velho compositor se portando como um espectador comum foi o LP Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara, de 1975, da foto aqui embaixo, que eu conheci graças ao meu grande amigo Zequinha Miguel, que bradava ser um dos maiores obras da música brasileira (ele costumava dizer isso de vários discos).

Um pouco mais recentemente, me lembrei do velho e falecido Taiguara (morreu poucos anos depois daquele dia), quando pedi a um ex-vizinho colecionador de vinis que o digitalizasse para mim. Mas só agora há pouco, quando baixei esse e outras obras de Taiguara no meu computador e pude ouvi-lo diversas vezes foi que compreendi a dimensão do Imyra.

Produzido por Wagner Tiso e com arranjos de Hermeto Paschoal, tendo como músicos Toninho Horta e Nivaldo Ornellas (e isso já é motivo suficiente para o LP ser histórico), Taiguara conseguiu escrever coisas maravilhosas e bastante contundentes contra o regime militar, mas sem ser nada panfletário. Na primeira faixa com letra, Público, ele diz ironicamente que "eles querem lotar o Maracanã e precisam de mim, lá vou eu". Afinal, era o disco da volta do compositor após o primeiro auto-exílio de dois anos em Londres.

Mas a música que poderia ser um hino dessa época, é Terra das Palmeiras, a segunda faixa cantada do LP. Com um corte seco, após introdução que simula sons de uma floresta tropical (É Hermeto, lembra?), entra flauta e violão, e Taiguara abre a primeira de quatro estrofes, com orquestra acompanhando:

Sonhada terra das palmeiras
Onde andará teu sabiá?
Terá ferido alguma asa?
Terá parado de cantar?


A segunda estrofe vem em seguida, revelando seu duro sentimento, um pouco mais diretamente, mas sem perder a ternura, parafraseando a ideologia da época.

Sonhada terra das palmeiras
Como me dói meu coração
Como me mata o teu silêncio
Como estás só na escuridão


O intermezzo que entra em seguida é a primeira frase da Marselhesa, hino da França, bem acoplada à melodia da música, sem pieguice. Mas é bom lembrar que a linha divisória desta com a elegância é invisível e intagível. Na terceira estrofe, Taiguara rasga a ternura e endurece o discurso e toca em tema delicado.

Ah! minha amada amordaçada
De amor forçado a se calar
Meu peito guarda o sangue em pranto
Que ainda por ti vou derramar


E imediatamente, Taiguara conclui a bela melodia com otimismo moderado, mas com o que se pode chamar de final feliz. Embora seja irônico

Ah! minha amada amortalhada
Das mãos do mal vou te tirar
P'ra dançar danças de outras terras
E em outras línguas te acordar

No fim, Taiguara canta o último verso na melodia da Marselhesa:

Ah! em outras línguas te acordar
E em de outras terras te acordar
Amada minha, te acordar
Querida minha, te acordar
Que outras línguas te acordar

Termino este post com a fim da descrição do perfil de Taiguara na Wikipédia.

"O espetáculo de lançamento do disco foi cancelado, e todas as cópias foram recolhidas pela ditadura militar em poucos dias. Em seguida, Taiguara partiu para um segundo auto-exílio que o levaria a África e à Europa por vários anos. Quando finalmente voltou a cantar no Brasil, em meados dos anos 80, não obteve mais o grande sucesso de outros tempos. Faleceu em 1996 devido a um persistente câncer na bexiga."

Conheça o site sobre o disco

Ou ainda, baixe o disco aqui no sensacional blog Um Que Tenha

Feliz 2009!

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